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segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Reforma Protestante, Luteranismo e questões relacionadas: Entrevista publicada na IHU On-line


Gosto de ler/ouvir gente inteligente, mesmo quando não somos completamente concordes. Por isso, transcrevo integralmente uma entrevista que saiu na revista eletrônica do Instituto Humanitas da UNISINOS. Aí vai!

Protestantismo: é tempo de refletir. Entrevista especial com Cláudio Kupka, Martin Dreher e Walter Altmann

Em 31 de outubro de 1517, Martinho Lutero pregou 95 teses na porta do castelo de Wittenberg, dando continuidade ao movimento da Reforma, que buscava a “renovação do cristianismo ocidental”. Ao final desse processo, o cristianismo se dividiu em confissões religiosas, “tendo cada uma sua própria confissão de fé: Confissão de Augsburgo (luteranos), Confissão Helvética (zwinglianos), diversas confissões calvinistas/reformadas e a Confissão de Fé Tridentina (católico-romana)”, explica Martin Dreher, professor especialista em História da Igreja, em entrevista à IHU On-Line, concedida por e-mail.
Quase 500 anos depois, os luteranos do Brasil estão engajados na elaboração de atividades que possam, nos próximos seis anos, relembrar e refletir sobre este momento histórico que deu origem ao protestantismo. “Esta articulação tem sido um bom exercício de caminhada conjunta. Nem sempre convergimos em todos os aspectos, é verdade. (...) No entanto, desde o início da mobilização, temos experimentado uma alegria e confiança crescente em nossos diálogos cheia de gratidão a Deus pelos sinais positivos desta caminhada”, disse o pastor Cláudio Kupka, autor do selo comemorativo dos eventos da Reforma, em entrevista também concedida por e-mail.
Em relação às comemorações, o teólogo Walter Altmann assinala, que “toda celebração deve vir acompanhada da reflexão quanto à vivência autêntica da fé hoje. Ou seja, não pode consistir num retorno a 1517, mas, ao contrário, evocando o acontecimento de 1517, projetar-se à frente, com um compromisso renovado”. Para Dreher, de 2011 a 2017, período que precede os 500 anos da Reforma, os luteranos “devem perguntar o que significa esse solus Christus em contexto, no qual o nome de Deus é ‘mercado’, em que o alvo da ética não é a preservação da boa criação de Deus, em que conceitos como ‘graça’, ‘fé’, ‘escritura’ precisam urgentemente ser recuperadas e em que precisamos perguntar pelo rosto de Deus”.
Dreher também comenta a recente visita de Bento XVI ao mosteiro de Erfurt e é categórico: “Ele não visitou o Lutero de Wittenberg (...), fez uma visita ao Martin Luder, monge agostiniano eremita da observância, que ali viveu antes de 1517, filho obediente da igreja romana”. E conclui: “Foi uma visita política”. E Altmann reforça: “Muito mais significativa seria, como é igualmente óbvio, uma visita a Wittenberg, que foi a cidade em que Lutero atuou como reformador. Quem sabe em 2017? Seria algo de extraordinário impacto nas relações ecumênicas”.
Martin Dreher é professor aposentado do Programa de Pós-Graduação em História da Unisinos. É graduado em Teologia, pela Escola Superior de Teologia – EST, e doutor em Teologia com concentração em História da Igreja, pela Ludwig Maximilian Universitat München. É organizador, juntamente com os pesquisadores Imgart Grützmann e J. Feldens, do livro A imigração alemã no Rio Grande do Sul. Recortes (São Leopoldo: Oikos, 2008). Entre suas obras, destacamos Populações rio-grandenses e modelos de Igreja (Porto Alegre: EST; São Leopoldo: Sinodal, 1998), História do povo luterano (São Leopoldo: Sinodal, 2005) e A Igreja no mundo medieval (São Leopoldo: Sinodal, 2005).
Walter Altmann é pastor luterano brasileiro, moderador do Conselho Mundial de Igrejas – CMI e ex-presidente da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil. É doutor em Teologia pela Universidade de Hamburgo, Alemanha. De 1995 a 2001, exerceu o cargo de presidente do Conselho Latino-Americano de Igrejas – CLAI, com sede em Quito. De 2003 a 2007 foi membro do Conselho da Federação Luterana Mundial – FLM, com sede em Genebra, Suíça. Entre suas obras, citamos Lutero e libertação: Uma releitura de Lutero em perspectiva latino-americana (Editora Sinodal, 1994).
Cláudio Kupka é bacharel em Teologia pelas Faculdades EST e atualmente é pastor da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil – IECLB na Paróquia Matriz em Porto Alegre e integrante da Comissão Coordenadora dos Festejos dos 500 anos da Reforma Luterana.
Confira a entrevista.

IHU On-Line Qual o significado da Reforma Protestante para o cristianismo e como esse momento se reflete ainda hoje?
Martin Dreher – O que se designa de “Reforma Protestante” faz parte de um conjunto histórico que podemos qualificar de crise e renovação do cristianismo ocidental, abarcando os séculos XV e XVI. Seus primórdios mais remotos podem ser situados por volta do ano 1300, quando surgem os primeiros estados nacionais em Portugal e na França. Aí encontramos também as primeiras igrejas nacionais ou territoriais comandadas pelos reis que passam a exercer o supremo episcopado em seus territórios. Os estados e igrejas nacionais surgem porque o Sacro Império Romano-Germânico se encontra em crise. Em crise vão se encontrar também os Estados Pontifícios, instituição feudal em busca de afirmação frente a outros estados feudais. “Igreja” é instituição por cujo controle diversos clãs, principalmente italianos, se digladiam. É nesse contexto que surge o clamor por uma reforma da Igreja “na cabeça e nos membros”. Esse clamor não é apenas de caráter moral, mas teológico. As primeiras tentativas de reforma vão ser feitas na Espanha por Isabel, a Católica e por seu confessor, o Cardeal Ximenez de Cisneros. Elas vão ser seguidas na Alemanha (Lutero), Zurique/Suíça (Zwínglio e os anabatistas), Genebra/Suíça (Calvino), nos Países Baixos e na França (reformados) e no Concílio de Trento sob a liderança da Companhia de Jesus.
Ao final desse processo vamos encontrar o cristianismo dividido em confissões religiosas, tendo cada uma sua própria confissão de fé: Confissão de Augsburgo (luteranos), Confissão Helvética (zwinglianos), diversas confissões calvinistas/reformadas e a Confissão de Fé Tridentina (católico-romana). Cada confissão de fé vai retratar o que é comum às diferentes confissões, mas também as divergências. É a partir do comum e das divergências que desde o século XX elas têm procurado dialogar entre si, buscando a unidade, tropeçando, contudo, em conceitos como igreja, sacramento, ministério/ordenação. Na pluralidade existente reflete-se, contudo, característica essencial do que designamos de “Modernidade”, na qual se reflete o anseio humano por “opção”, também a opção quanto à expressão da fé.
Walter Altmann – A Reforma Protestante se constituiu num decidido esforço por restituir a integridade da Igreja, em consonância com o Evangelho. Houve, naturalmente, um protesto veemente contra abusos que eram praticados, como o comércio de indulgências. Contudo, isso só se deu porque foi acompanhado por uma radical redescoberta do Evangelho da graça divina, acessível a todos mediante a fé. Isso revolucionou a cristandade e acabou gerando, contrariamente à vontade dos Reformadores, uma nova confissão religiosa. Hoje, acoplado aos esforços ecumênicos, o legado da Reforma à cristandade é precisamente essa busca perseverante da integridade da Igreja, em consonância com a Escritura, como fonte normativa da fé.

IHU On-Line Em que consistiam as 95 teses pregadas por Lutero no dia 31 de outubro de 1517 na porta da Igreja do Castelo de Wittenberg?
Martin Dreher – A partir das 95 teses de 31 de outubro de 1517 podemos caracterizar o movimento iniciado por Lutero de “penitencial”. Para alcançar perfeição na vida cristã, o movimento monástico iniciado por Bento de Núrsia desenvolveu a prática da confissão, mais tarde também assumida pelos leigos e, finalmente, tornada obrigatória pela instituição eclesial. O Sacramento da Penitência envolvia diversos momentos: a contrição do coração por causa dos pecados cometidos, a confissão oral perante um confessor, a imposição de pena, satisfação por obras e a absolvição. Por causa da dificuldade que por vezes ocorria para cumprir a pena imposta e a satisfação necessária, desenvolveu-se na Idade Média prática das indulgências que nada mais são que a substituição de uma pena/obra por outra. No contexto do incipiente capitalismo as penas/obras puderam ser substituídas por importância em dinheiro, do que surgiram “cartas de crédito” ao portador ou para almas do purgatório para pena/obra a ser imposta ou não cumprida no caso dos mortos. No território alemão, monges dominicanos foram incumbidos, como se corretores fossem, da colocação de tais indulgências. Além de professor universitário, detentor da Cátedra de Leitura da Bíblia, na Universidade de Wittenberg, Lutero era também sacerdote em uma das paróquias da cidade.
Ao impor penitência a paroquiano, este lhe afirmou não necessitar cumpri-la, pois adquirira indulgência do pregador Johannes Tetzel OP. Indignado, o professor Lutero elaborou 95 teses acadêmicas que visavam debate acerca do valor das indulgências. Normalmente, tais teses eram afixadas na porta da igreja, onde delas se poderia tomar conhecimento para posterior participação no debate. Não há certeza dessa afixação. É possível que Lutero as tenha enviado a seu arcebispo e bispo, esperando posicionamento e que só posteriormente divulgado. O que não sabia era que estava a intervir em interesses de diversos partidos. Alberto de Brandenburgo, que já era detentor de dois bispados, conseguira ser, ainda, designado primaz da Alemanha, na sé de Mainz (Mogúncia). Para essa designação fez empréstimo junto à casa bancária dos Fugger. Para quitar o empréstimo solicitou autorização de Leão X para vender indulgências, através dos dominicanos. O resultado da venda seria dividido entre os Fugger e a Cúria Romana, pois Leão X mandara demolir a Basílica de São Pedro, erguida por Constantino I, e dar início à construção da atual Basílica de São Pedro. Assim, o papa, o arcebispo, os Fugger e a ordem dos dominicanos sentiram-se atingidos por Lutero.
Teses
Lutero foi acusado de suspeita de heresia, citado a comparecer a Roma em curto espaço de tempo e as coisas se precipitaram. Tudo isso porque quis esclarecer como diz a primeira de suas 95 teses: “Quando Nosso Senhor Jesus Cristo diz ‘Fazei Penitência’ quis que a vida dos crentes fosse um contínuo arrependimento”. As teses ainda não apresentam o que seria, depois, a teologia reformatória, mas são estopim para que se tente definir teologicamente quem é Deus, quem é Jesus, o que são graça e fé, o que é justiça de Deus, qual o lugar da Sagrada Escritura, o que é Igreja, qual a importância dos sacramentos, qual a função do ministério ordenado.
Walter Altmann – Com suas 95 teses, pregadas à porta da Igreja do Castelo de Wittenberg, Lutero propunha, consoante os costumes acadêmicos da época, um debate teológico acerca do valor das indulgências. O que deveria ser um debate acadêmico disseminou-se como rastilho de pólvora e se transformou num grande movimento popular. Nelas, Lutero combatia precisamente o comércio de indulgências, pois, segundo ele, isso anulava, na prática, tanto a graça divina como a própria penitência. A primeira das teses afirma, então, que, quando Jesus exortou a fazer penitência, queria que “toda a vida dos fiéis fosse penitência”.

IHU On-Line Para os luteranos, qual a importância de celebrar a data de 31 de outubro e, em breve, os 500 anos da Reforma?
Martin Dreher – A data 31 de outubro de 1517 foi comemorada pela primeira vez em 31 de outubro de 1617. No início, a data não teve importância, mas suas consequências tiveram. Desde o ano de 1617 há a consciência de que na Europa há dois partidos religiosos: evangélicos e católicos, o que virá a ser corroborado pela Paz da Westfália de 1648. O conceito “evangélico” subsume luteranos e calvinistas. “Celebrar”, nesse caso, é um paradoxo. Para os luteranos é motivo de reflexão para verificar se, passados 500 anos, são fiéis ao solus Christus (somente Cristo) pelo qual lutaram os reformadores. Nos dias em que vivem (2011-2017) devem perguntar o que significa esse solus Christus em contexto, no qual o nome de Deus é “mercado”, em que o alvo da ética não é a preservação da boa criação de Deus, em que conceitos como “graça, “fé”, “escritura” precisam urgentemente ser recuperadas e em que precisamos perguntar pelo rosto de Deus. Terá Deus o rosto da “prosperidade” ou do crucificado e ressurreto?
Walter Altmann – A data de 31 de outubro de 1517 passou para a história como o nascedouro da Reforma. É assim celebrada não apenas pelos luteranos, mas pelos protestantes em geral e, mesmo, por igrejas pentecostais. A pesquisa, porém, já demonstrou que a descoberta teológica de Lutero, que era professor de Bíblia, a respeito da justificação por graça e fé, consoante o apóstolo Paulo, se deu já anos antes. E as consequências dessa descoberta foram sendo desenvolvidas no decorrer dos anos posteriores, em sucessivos tratados escritos por Lutero. A celebração não é, contudo, a celebração da nova confissão religiosa que surgiu, pois a divisão da cristandade não condiz com a vontade de Deus, mas apenas a renovada evocação dessa descoberta teológica, que deve ser vista no contexto da caminhada do povo de Deus através dos tempos. Por isso toda celebração deve vir acompanhada da reflexão quanto à vivência autêntica da fé hoje. Ou seja, não pode consistir num retorno a 1517, mas, ao contrário, evocando o acontecimento de 1517, projetar-se à frente, com um compromisso renovado.
Cláudio Kupka – A Reforma Luterana é um evento que não acontece isoladamente dos processos históricos de seu tempo. Iniciativas de reforma na Igreja eram conhecidas. Havia um clamor por uma fé mais acessível ao povo simples. Igualmente, o humanismo renascentista postulava uma maior valorização do ser humano, da sua capacidade de conhecimento e da sua dignidade. No campo político-religioso, havia um clamor por maior independência em relação a Roma acompanhado de um processo paralelo de fragmentação das nações da Europa.
Lutero, ao se indispor contra uma prática religiosa de seu tempo (a venda de indulgências) e ao se articular teologicamente para fundamentar essa indignação, vai mobilizar paralelamente forças em favor da causa da Reforma. Lutero vai se fixar nas questões teológicas que o preocupam, mas o clima de mudanças oportunizará uma série de transformações ao seu redor. Príncipes saxões, humanistas e o povo o apoiarão. Lutero simbolizará, no imaginário do povo, alguém com coragem para se contrapor a questões e práticas que há muito careciam de uma revisão e que, até então, a Igreja e o Império haviam abafado. Um exemplo é a tradução da Bíblia para o alemão. Ao oportunizar ao povo conferir nas Escrituras se a pregação feita em nome de Cristo era confiável, Lutero empreendeu uma tarefa bem maior que o seu horizonte teológico. Sem pretender, ao unificar os dialetos e um idioma único, acabou tornando-se um dos formadores do idioma alemão assim como o conhecemos hoje. O acesso à Bíblia, por parte do leigo, simbolizou também o aceso ao saber e o direito de questionar.
Muitas dessas ideias são a base da Modernidade. Questões como relação entre Igreja e Estado, liberdade humana, educação e cidadania são até hoje ideias estruturadoras de nossa sociedade. Devemos muito disso à Reforma.

IHU On-Line Como o luteranismo se relaciona com outras religiões como as de matriz africana, por exemplo? Além do ecumenismo, percebe algum avanço no diálogo inter-religioso?
Martin Dreher – Há entre luteranos a consciência de que o diálogo inter-religioso é necessário por causa da preservação do planeta e da espécie humana. Em termos religiosos, o mundo afro é tremendamente multifacetado. Por isso os diálogos, quando existem, só podem ser feitos em nível local e não na forma de diálogo com federações. Ele é bastante difícil de ser abarcado. No tocante ao diálogo entre cristãos, vejo-o em compasso de espera. Se olharmos para dentro de cada uma das confissões cristãs, vemo-las envoltas em uma série de crises internas, resultantes do que se vem designando de pós-modernidade, onde a base da sociedade é o mercado. Como sobreviver no mercado religioso? O diálogo continua, mas no geral vai ser esforço de pequenos grupos.
Walter Altmann – Todas as crenças e convicções religiosas merecem igual respeito, incluindo-se aí, obviamente, também as religiões afrodescendentes. Um dos fenômenos mais preocupantes hoje no seio do cristianismo, e das religiões em geral, é a emergência de segmentos radicalizados que absolutizam sua própria compreensão religiosa e tentam impô-las às pessoas de outras crenças, por vezes com o uso da violência. Qualquer fundamentalismo é uma violação do próprio evangelho. Por isso a relação com outras religiões deve dar-se em atitude dialogal, em que cada parte tem a plena liberdade de expor suas convicções, ação acompanhada do esforço sincero por compreender as convicções alheias e delas aprender. Deve se buscar, inclusive, a cooperação inter-religiosa em ações sociais, na defesa da ética, na criação de uma cultura de paz e no cuidado para com a boa criação de Deus. Ou seja, há avanços no diálogo inter-religioso, mas também tentações e perigos bem evidentes.

IHU On-Line Quais os desafios para que o ecumenismo se estabeleça de forma plena?
Martin Dreher – O principal desafio se chama “poder”. As diversas denominações estão envoltas em questões internas, tentativas de resposta aos desafios lançados pela pós-modernidade, na qual tudo quer ser regido pelo mercado. Há muita insegurança. Quando há insegurança, um grupo procura sobrepor-se ao outro. Com isso o diálogo com os diferentes de fora do grupo passa para um segundo plano.
Walter Altmann – O ecumenismo avançou muito nos últimos cem anos. Muitos dos dissensos teológicos puderam ser superados ou, pelo menos, vistos sob uma nova luz. Há entre as principais confissões cristãs um crescente respeito mútuo e disposição para a cooperação. Ao mesmo tempo, porém, registra-se, em tempos pós-modernos, um processo de intensa fragmentação religiosa, fenômeno que apresenta um grande desafio ao movimento ecumênico. Uma iniciativa mais recente é a do chamado Fórum Cristão Global (ou Mundial), em que praticamente todas as famílias confessionais cristãs (ortodoxos, católicos, protestantes ecumênicos, protestantes evangélicas e pentecostais) participam com representações oficiais. Regressei recentemente de Manado, Indonésia, do segundo encontro global desse Fórum (o primeiro ocorreu em Limuru, Quênia, em 2007). Deve-se observar também que a institucionalidade de nossas igrejas não poucas vezes resiste a assumir as consequências que são sugeridas ou, mesmo, testadas pelos diálogos teológicos e pela prática das comunidades locais.

IHU On-Line Quais as diferenças entre as igrejas da IECLB e da IELB? Há uma aproximação entre ambas?
Martin Dreher – O luteranismo se estabeleceu no Brasil a partir do ingresso de imigrantes dessa confissão no século XIX. Como não tinham acompanhamento eclesiástico-institucional desde suas pátrias de origem, organizaram sua própria vida religiosa na forma de comunidades eclesiais de base. Somente mais tarde, quando as colônias dos imigrantes já tinham certa prosperidade econômica, vieram pastores que terminaram por formar estruturas eclesiais distintas e concorrentes entre si, hoje designadas de Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil IECLB e Igreja Evangélica Luterana do Brasil IELB.
Enquanto a IECLB esteve mais exposta ao pensamento da Ilustração, a IELB esteve mais exposta ao Romantismo e ao neoconfessionalismo do século XIX. Destaco, contudo, que minha apreciação tem acento no “mais”. Romantismo e confessionalismo estiveram também presentes na IECLB e aspectos da Ilustração se fazem presentes na IELB. Há alguns distintivos que estão sendo trabalhados entre as duas denominações: o caráter da Bíblia, a ordenação feminina, a celebração aberta ou restrita da eucaristia. No todo, devo dizer que há mais aproximação do que separação.
Walter Altmann – Há diferenças históricas, no sentido de que os laços de comunhão confessional da IECLB foram tradicionalmente com igrejas evangélicas na Alemanha (embora hoje inseridos na vida da Federação Luterana Mundial – FLM como comunhão luterana em nível global), enquanto a IELB é oriunda da atuação de missionários norte-americanos do chamado Sínodo de Missúri entre imigrantes alemães do Brasil e seus descendentes. De outra parte, a IELB adota uma postura confessionalista que, em boa medida, se restringe à sua própria denominação, enquanto a IECLB entende a confessionalidade luterana como essencialmente vinculada ao empenho ecumênico. Na leitura da Escritura, a IELB adota uma interpretação mais literal, enquanto que a IECLB acolhe os modernos métodos críticos de exegese, centrando-se mais no cerne da Escritura do que na letra, ou seja, ela aceita como norma “aquilo que promove a Cristo”, distinto de seu arcabouço histórico e cultural. Por conseguinte, para a IELB também é mais difícil de aceitar a IECLB plenamente como igreja luterana do que vice-versa. Há, porém, cooperação entre as duas igrejas, que, por exemplo, publicam conjuntamente as obras de Lutero em português e um devocionário comum para as famílias luteranas.

IHU On-Line Em outra entrevista que nos concedeu, o senhor disse que Lutero queria uma Reforma da Teologia. Hoje, quase 500 anos depois, vê necessidade de uma nova reforma teológica?
Martin Dreher – A teologia tem que passar por constante reforma. Ela é tentativa de dar razão do que a Igreja crê, em diferentes contextos. Não podemos nos contentar com as respostas de gerações passadas. Cada geração é chamada a confessar sua fé ali onde vive e dizer do significado e da importância de Jesus Cristo. A boa notícia a respeito de Jesus Cristo é que Deus aceita o ser humano incondicionalmente. Num mundo em que as pessoas cada vez mais valem pelo que têm e consomem, essa mensagem é fundamental, também para as ofertas que se faz em nome de Jesus, principalmente aquelas que prometem “prosperidade”.

IHU On-Line Hoje, quase 500 anos depois, vê necessidade de uma nova reforma teológica?
Walter Altmann – Um dos preceitos da Reforma é que “a Igreja da Reforma deve ser vista sempre como Igreja em reforma”. Não pode haver uma compreensão estanque do Evangelho, pois a teologia sempre se dá como um movimento entre dois polos, o da fonte da fé conforme testemunhada na Escritura e o contexto atual. Como este é cambiante, a teologia deve permanentemente se reavaliar e atualizar suas percepções (eventualmente também corrigi-las). Não vejo, porém, que necessitemos uma reforma teológica no sentido da que ocorreu no século XVI. Antes, o que necessitamos é intensificar, na prática e na reflexão teológica, o movimento ecumênico de busca da unidade, que já temos em Cristo, mas que vivemos em separado em nossas igrejas.

IHU On-Line Como o senhor avalia a recente visita do Papa Bento XVI no mosteiro de Erfurt, onde Lutero foi monge?
Martin Dreher – Bem. Bento XVI, o bávaro (e entre os bávaros estavam os principais polemistas em relação a Lutero, basta pensar em Eck de Ingolstadt), fez uma visita ao Martin Luder, monge agostiniano eremita da observância, que ali viveu antes de 1517, filho obediente da igreja romana, cheio de dúvidas e que pouco questionava. Não visitou o Lutero de Wittenberg, nem o do Debate de Heildelberg (1518), quando passou a assinar “Martinus Eleutherius”, Lutherus, o liberto. Não falou em “reforma”, também não falou na Dominus Iesus. Foi uma visita política.
Walter Altmann – A visita foi obviamente significativa, na medida em que demonstrou um apreço do Papa Bento XVI pelo monge agostianiano Martinho Lutero. Nesse sentido, contribui para a continuidade do processo de estreitamento de relações entre a Igreja Católica e as igrejas da Reforma. Contudo, deve-se observar também que a visita se deu ao convento agostiniano de Erfurt, onde Lutero recebeu sua formação espiritual e bíblico-teológica antes dos eventos da Reforma. Muito mais significativa seria, como é igualmente óbvio, uma visita a Wittenberg, que foi a cidade em que Lutero atuou como reformador. Quem sabe em 2017? Seria algo de extraordinário impacto nas relações ecumênicas.

IHU On-Line Quais as perspectivas e os desafios do luteranismo no Brasil?
Martin Dreher – O luteranismo é pequena denominação no Brasil. Está mais restrito ao Brasil Meridional. É aqui que tem e que pode ter presença mais destacada. Deu e dá importante contribuição na área educacional. Sua teologia merece reconhecimento. Sua ética diz que vale a pena lutar pelo melhoramento deste mundo que é e continua a ser amado por Deus. Sua afirmação de que Deus se revela sob o contrário do que Ele é permite-lhe olhar para onde Deus olha, para o insignificante e desprezado e aliar-se a todos aqueles que dizem da importância dos mínimos.
Walter Altmann – Muito sumariamente, diria que o luteranismo no Brasil, na sua vertente na IECLB, busca ser fiel a seu transcurso histórico de vivenciar o evangelho fortalecendo suas comunidades e exercitando seu compromisso ecumênico com as demais igrejas. Ao mesmo tempo, percebe encontrar-se num contexto de crescente pluralismo e competitividade religiosa. Por isso, ao enfatizar mais e mais que a missão é parte essencial da vida da Igreja, busca assumi-la em espírito não proselitista, mas sim ecumênico. Também se sente mais e mais desafiada a transmitir a voz evangélica para dentro dos desafios sociais e políticos do país.
Cláudio Kupka – O luteranismo representa hoje uma voz que clama para a centralidade da teologia da graça no mundo cristão. Há um verdadeiro redescobrimento dos fundamentos da primeira reforma, como poderíamos denominar a Reforma Luterana. Setores do protestantismo se distanciaram dos fundamentos da Reforma. Há quem diga que o neopentecostalismo não mais represente parte do cristianismo na medida em que, em seus cultos, a graça de Deus (leiam-se aqui bênçãos de prosperidade) é comercializada.
É verdade que as duas igrejas luteranas (IECLB e IELB) têm acentos diferenciados nesta caminhada. Seja enfatizando a evangelização e a relevância da pregação da Palavra e espiritualidade, seja vivenciando um conceito de missão mais amplo, onde diaconia, ética e vida comunitária traduzem a presença graciosa de Deus no mundo, cremos ser uma voz relevante no espaço religioso e na sociedade. Luteranos têm abertura para o diálogo com as ciências e têm, no aprofundamento da reflexão ética, um espaço de diálogo das questões que ocupam na agenda de nossa vivência como sociedade brasileira hoje. Os luteranos no Brasil são percentualmente pouco expressivos, mas que têm contribuído de forma histórica na oferta de educação de qualidade e em ações diaconais e sociais, promovendo a melhoria da qualidade de vida e a formação para a cidadania de importantes segmentos da sociedade brasileira.

IHU On-Line – Que atividades estão sendo preparadas para celebrar os 500 anos da Reforma, em 2017?
Cláudio Kupka – O evento que marcou a abertura das comemorações dos 500 anos da Reforma Luterana, ocorrido no último dia 18 de outubro, foi uma das ações principais. Nele pudemos dar início a um conjunto de ações visando dar maior visibilidade à contribuição luterana para dentro do contexto cristão e para a própria sociedade. Nossa iniciativa no Brasil tem relação também com ações semelhantes que serão feitas em muitos países e que culminarão em 2017 com ações em âmbito global. A comunicação e o fortalecimento dos vínculos institucionais são muito importantes nesse processo. Luteranos, em geral, são tímidos ao ocupar o seu espaço e falar da relevância de sua tradição. Precisam, de tempos em tempos, mobilizar esforços para tornarem-se mais conhecidos na sociedade. É bom lembrar que sofremos o fenômeno do “sequestro” do nome evangélico por parte dos movimentos neopentecostais.
Nesse sentido, com tais eventos, promovemos o conhecimento da contribuição da tradição luterana para o ser Igreja hoje. Temos em mente eventos de reflexão teológica, publicações, encontros para reunir o povo luterano e marcas no espaço público de nossas cidades, como praças ou jardins que lembrem a Reforma Luterana.
No evento de 18 de outubro, lançamos um vídeo comemorativo e um selo que nos acompanhará até o Jubileu em 2017.

IHU On-Line Como o senhor vê a articulação nacional entre as duas religiões luteranas, IECLB e IELB, na celebração da Reforma?
Cláudio Kupka – Essa articulação tem sido um bom exercício de caminhada conjunta. Nem sempre convergimos em todos os aspectos, é verdade. Temos nossos “estranhamentos históricos”. No entanto, desde o início da mobilização, temos experimentado uma alegria e confiança crescente em nossos diálogos cheios de gratidão a Deus pelos sinais positivos da caminhada. Estamos experimentando um conhecimento mútuo de nossas vocações e talentos. A área de publicação de obras de Lutero tem sido um campo tradicional de cooperação. Agora é hora de avançar em outros campos através de iniciativas que vão continuar a exigir de nós capacidade de diálogo e cooperação. Tenho muita esperança que vamos no aproximar mais através dessa ação conjunta.

Ein feste Burg ist unser Gott (Tá lembrando que hoje é dia da Reforma?)



No dia 31 de outubro de 1517, o então padre Martinho Lutero afixava nas portas da igreja de Wittenberg 95 teses que combatiam os abusos nas vendas de indulgências praticadas pela Igreja Católica Romana naquele tempo. Esse ato se tornou marco do início da Reforma Protestante. De fato, ali se iniciava o processo que desencadearia muitas mudanças. Não se deve pensar que tudo estava resolvido. Claro que não. As 95 teses, embora importantes, não refletem nem um centésimo do que foi desenvolvido por Lutero. Seu pensamento se tornou mais elaborado e pungente com o tempo, inclusive devido às reações (e apatias) da Igreja Romana, a qual ele, em princípio, não pensava em deixar (na verdade ele nunca a deixou; foi expulso). Ademais, é perceptível que ele nunca pretendeu dizer que a Igreja de Roma estava errada em tudo, e que deveríamos recomeçar do zero. Não mesmo. Ele só queria livrá-la do que realmente era maléfico e que desviava a compreensão clara da Boa Nova de Salvação pela Fé. 

Precisamos de mais gente parecida com Lutero, isto é, de mais pessoas dedicadas ao estudo meticuloso das Escrituras, convictas do perdão pela fé em Jesus Cristo, corajosas e atentas às necessidades dos mais simples. Ser assim é honrar o legado do Rouxinol de Wittenberg.

Enfim, para celebrar o dia da Reforma, sugiro começar o dia escutando esse célebre hino composto por Martinho Lutero: "Castelo forte é nosso Deus". Abaixo, uma versão do mesmo em português:



Castelo forte é nosso Deus,
Defesa e boa espada;
Da angústia livra desde os céus
Nossa alma atribulada.
Investe Satã com hábil afã
E sabe lutar com força e ardil sem par;
Igual não há na terra.

Sem força para combater,
Teríamos perdido.
Por nós batalha e irá vencer
Quem Deus tem escolhido.
Quem é vencedor?
Jesus Redentor, o próprio Jeová
(1),
Pois outro Deus não há;
Triunfará na luta.

O mundo venham assaltar
Demônios mil, furiosos,
Jamais nos podem assombrar,
Seremos vitoriosos.
Do mundo o opressor,
Com todo o rigor julgado ele está;
Vencido cairá por uma só palavra.

O Verbo eterno ficará
Sabemos com certeza,
E nada nos perturbará
Com Cristo por defesa.
Se vierem roubar os bens vida e o lar -
Que tudo se vá! Proveito não lhes dá.
E céu é nossa herança.


(1) Neste trecho, para facilitar a rima, o tradutor gera uma perda literária considerável. Lutero não usa o nome Jeová ou outro parecido, mas "der Herr Zebaoth", que seria "o Senhor Sabaoth". Por que é relevante a perda? Ora, Sabaoth é a transliteração do termo hebraico que significa "exércitos". "der Herr Zebaoth" deve ser entendido como "o Senhor dos Exércitos" (em hebraico, a expressão usual é escrita com o tetragrama: YHWH TSABAOTH). O termo é escolhido pelo erudito autor por sua relação com o contexto bélico. Essa relação semântica se perde com a referência ao nome Jeová tão somente. E, assim, a riqueza da letra da música em seus detalhes também se perde. Sim, percebo a cada dia que preciso aprender alemão.


Abraço,


Cesar

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

O quiabo intercultural e o almocinho multicultural: pensando conceitos com a culinária

 
foto do site www.nutricaoemfoco.com.br

O objetivo desta postagem é modesto: diferenciar "interculturalidade" de "multiculturalidade", conceitos que julgo importantes para se aproximar do contexto cultural do século I d.C.. A culinária nos ajudará na ilustração.

De início, imaginemos duas possibilidades. Primeiro, pensemos em um almoço que reúne duas famílias que estão se confraternizando. Uma é mineira. A outra, italiana. A família mineira se responsabiliza pela comida, enquanto a italiana toma conta da bebida. Posta a mesa, vislumbramos um delicioso e típico frango com quiabo, um angu mineiro, couve refogada e arroz com alho. E, no meio de tanta gostosura, garrafas de vinhos tintos italianos. Depois do almoço, os mineiros trazem a goiabada com queijo e os italianos contribuem com um bom capuccino.

Agora, pensemos noutra situação (e esta não será hipotética). Eu estou em casa e tenho quiabo. Decidimos que teremos frango com quiabo e angu, para combinar com a chuva mansa lá de fora. Ótimo. Mas procuro limão e não tenho. Procuro vinagre e não tenho. Como retirar a baba do quiabo sem um desses ingredientes? Corro os olhos e, ao lado do azeite, reparo no nosso "Aceto Balsamico di Modena", o que é traduzido "Vinagre Balsâmico de Modena", um alimento com a famosa "indicazione geografica protetta", o que significa que para ter o nome que tem, ele precisa ter sido produzido especificamente na região da cidade de Modena, na Itália. É um vinagre especial, escuro, feito a partir de vinho tinto e mosto de uva. Bem, é o que temos. Lá vou eu picar o quiabo, começar a refogá-lo no azeite até aparecer a baba, e, então, acrescentar generosa quantidade do Vinagre Balsâmico. Como é escuro, o prato parece que vai ficar bem diferente. O sabor também. Não importa. Acrescento um pouco de extrato de tomate e o frango já previamente cozido. Borbulha e cheira um tempo no fogão. Pronto. O resultado é fenomenal. Entra pro caderno de receitas.

Esta última situação é minha ilustração da interculturalidade. Elementos de duas (ou mais) culturas se misturam, se comunicam e produzem resultados novos. Já a situação anterior, a do almoço entre mineiros e italianos, representa a multiculturalidade, que indica a coexistência de elementos de culturas diferentes em um mesmo lugar e tempo. Eles estão juntos, mas as interações não são tão explícitas, cada um tem seu espaço.

É isso. Frequentemente, erramos na apreciação de algumas cenas e fatos do Novo Testamento porque queremos ler o contexto da época como multicultural, quando, em muitas ocasiões, precisamos estar sensíveis à interculturalidade que se evidencia.

Aprendeu alguma coisa? Bom, pelo menos a ideia do quiabo você deve ter aprendido. Faça, porque fica muito bom mesmo, com uma coloração mais escura e um sabor todo especial.

Um abraço,

Cesar


terça-feira, 25 de outubro de 2011

O sangue dos garis e o silêncio dos profetas


Quando o sol mal beija o asfalto
Já lá escorre o sangue dos garis
novos companheiros de Abel

O Caim bancário
Dirige carro caro, 
embriagado
pelo poder

E tem poder:
mata
paga
sai

Quanto custa um gari?
Até ontem não se sabia.
Agora todos respondem de cor:
Dois garis negros custam cinquenta mil
Vinte e cinco cada um.
De brinde, quase vai um terceiro.

E os profetas? 
Não vão falar? 
Não vão clamar?
Os profetas... Eles estão ocupados falando de misterioso tripé espiritual, de prosperidades, botas de piton, de pecados sexuais, banalidades e vaidades.

E os crentes? 
Não vão perguntar perplexos: o que é isso?
Os crentes... Eles querem é ter o mesmo que o Caim bancário:
a renda, o poder, o carro, a roupa.

Quem vingará o sangue dos três garis?
Quem dará eco a sua dor e voz a seu silêncio?

Quem interpelará os legisladores, que legislam para o próprio lucro, e se esquecem do povo que sofre tamanha injustiça?
Quem exigirá mudança de nossas leis frouxas?




Veja a notícia AQUI

domingo, 23 de outubro de 2011

Frases de um padre (e que padre!)

Na semana que passou, eu tinha um compromisso especial: participar do VII Simpósio Filosófico-Teológico: perspectivas em um mundo plural, na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia. Bem, não pude aproveitar muito do evento, por falta de tempo ou de organização pessoal. Estive presente somente para uma conferência e para apresentar uma comunicação (ocasião em que pude assistir também à apresentação de outros dois comunicadores). 

Minha comunicação não vem tanto ao caso. Dei-lhe o título de Nota sobre a conversão ao judaísmo na Antiguidade: testemunhos da Bíblia Hebraica e Fílon de Alexandria. Eventualmente, posso escrever sobre o assunto aqui. Agora, contudo, quero relatar algo que ouvi na conferência do professor Jaldemir Vitório.

Eu o conhecia de nome, por ter lido algo de seu trabalho sobre Bíblia. Ele é reitor da Faculdade Jesuíta e orienta estudantes de Mestrado e Doutorado (a FAJE tem conceito 6 pela Capes, o que a faz a mais bem conceituada, empatada com a EST). Mas, além disso, ele é padre. Eu pensava que seria padre só de nome, que rezaria uma missa de vez em quando, no Natal ou Semana Santa. Mas não. Ele disse que trabalha como padre mesmo. Tudo bem, pensei, deve trabalhar em uma comunidade abastada, de uma paróquia nobre. Não. "Trabalho como padre em Ribeirão das Neves". Para quem não tem ideia do que isso signifique, eu explico. Neves, como dizemos, é a cidade mais sofrida e pobre da Região Metropolitana de Belo Horizonte. Os governos só fizeram uma coisa, um investimento por lá: construir presídios. Há muitos bairros da cidade sem asfalto. O atendimento de saúde é precário e as escolas carecem de tudo. Confesso meu espanto mesquinho. Nunca imaginei que ele trabalhasse num lugar assim.

Vamos lá! Simpático, falou-nos sobre o profetismo clássico do século VIII a.C. e sua relação com a política, sua tensão com a monarquia. Academicamente, foi uma boa conferência. Mas eu não esperava (e não espero nesse tipo de evento) que fosse também espiritualmente edificante. E foi. Para dar uma ideia, deixo duas falas do religioso que mexeram comigo.


Um ouvinte lhe perguntou se a pregação dos profetas não era, diferente do que ele vinha explicando, mais contra a idolatria do que contra as injustiças. Ele, então, me saiu com essa resposta brilhante:

"Quando há injustiça, há idolatria. Quando você cultua o Deus verdadeiro, não há injustiça. Mas quando você passa a cultuar o outro deus, você se coloca como deus sobre o próximo, para impor e subjugar. Aí, há injustiça."


Pouco depois, outro ouvinte se referiu a um problema de certa diocese. Segundo ele, os padres do lugar não levantam a voz contra as injustiças praticadas na região. Preferem manter seus discursos mornos que não incomodam ninguém. Jaldemir (permito-me chamá-lo assim por sua simpatia) comentou serenamente que as pessoas não exercem sua vocação de profetas porque não querem arriscar a própria pele, e finalizou:


"Quem não tem personalidade não serve para ser cristão. Serve para ser católico. Serve para ser evangélico. Mas não serve para ser cristão. E muito menos para ser profeta."


Ah! Sem comentários! Comentem vocês!

Um abraço!



Cesar

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

O guerreiro e a espada - O espírito e a mensagem



Quando vemos um habilidoso praticante de wushu (1) executar uma forma (2) com espada, podemos não conhecer a técnica em detalhes, mas, ainda assim, algo fica claro: a espada não representa ameaça para ele mesmo. Ele a movimenta com tranquilidade, como se não se tratasse de um elemento tão cortante. Isso acontece porque, segundo os ensinamentos dessa arte milenar, a espada não deve ser para o guerreiro algo separado, exótico, mas sim a extensão de seu próprio corpo. Ele pode, então, passá-la a centímetro de sua própria orelha sem olhá-la, como nós fazemos com nossa própria mão. A espada já é parte dele.


Paulo de Tarso certamente não conhecia wushu, pois suas viagens se restringiram ao Mediterrâneo. Contudo, permito-me uma relação previsível nesta altura do texto: "a espada do espírito, a qual é a palavra de Deus" (Ef 6:17) deve ser também uma extensão de nosso próprio espírito, e não mais um elemento estrangeiro em nós. Uma consequência da presença do Espírito Santo em nós é que o Autor da Palavra a transcreve no mais íntimo de nosso ser. De modo que já não é texto de um livro, mas letras que se tecem em nós, tão intimamente ligadas a nosso ser quanto nossos próprios tecidos musculares. E tomo como testemunho as palavras do Messias: "Aquele que crê em mim, conforme diz a Escritura, rios de água viva fluirão de seu ventre" (Jo 7:38) (3), lembrando também de Jeremias 31:33-34.


A espada do espírito - e escrevo "espírito" com minúscula, julgando poder tratar-se não necessariamente do Espírito Santo, mas do nosso próprio espírito, cujo instrumento para embate com outros espíritos (isto é, outras pessoas) e o mundo exterior em geral é justamente a linguagem (4)- não deve ferir o próprio espírito ou o próprio corpo. A Palavra de Deus não deve ser usada de modo mesquinho, com vistas a ferir outro membro do mesmo Corpo (de Cristo). Pelo contrário, como elemento próprio, ajustado e até íntimo, ela deve ser usada com parcimônia, precisão e amor, pois é de veras cortante.


O guerreiro chinês se entende com sua espada e a entende como continuação de seu próprio braço. Ele se responsabiliza pelo que ela corta ou deixa de cortar. Não a culpará jamais, dizendo: "É que ela escorregou!" Cada cristão precisa, de modo semelhante, reconhecer a responsabilidade que há no fato de ter tão excelente espada como arma de seu próprio espírito e não usá-la de modo irresponsável ou negligente.


Que o Deus da Paz nos guie e ensine a identificar cada um dos verdadeiros inimigos, mesmo que invisíveis, como se subtende em uma forma de wushu, pois frequentemente temos escolhido de modo equivocado os oponentes, e acabamos cortando nossa própria perna, decepando nosso dedo ou dando murro em ponta de Palavra.


Abraços pacíficos,

Cesar


Notas: 
(1) Wushu é o nome chinês para a arte marcial mais conhecida no ocidente como Kung-Fu. Na verdade, pode-se dizer que há sob este nome uma multiplicidade de artes marciais.
(2) Uma "forma" é uma série de movimentos decorados que simulam uma luta contra um ou mais adversários invisíveis. Sua função é primordialmente didática.
(3) Noutra ocasião, voltarei à citação do Evangelho para discorrer a respeito.
(4) Geralmente, entende-se que, neste trecho de Efésios, os genitivos devem ser lidos como apositivos, isto é, eles esclareceriam o valor metafórico de cada elemento da "armadura de Deus". Neste sentido, o "capacete" é metaforicamente a "salvação", o "escudo" é metaforicamente a "fé" etc. Na oração que cito, contudo, é difícil entender que a "espada" seja metaforicamente o "Espírito Santo", ou mesmo o "espírito do ser humano". Pelo menos aqui, a relação parece ser de posse, tratando-se de um genitivo possessivo. A "espada" é mesmo "do espírito". (Por isso, inclusive, se faz necessário esclarecer qual é o sentido metafórico de "espada" com uma oração que se acrescenta: "que é a palavra de Deus".) E se a "espada" para um corpo é uma lâmina de aço, para o espírito é a palavra. E torna-se importante pensar que palavra é essa. Não me parece que a referência aqui seja ao cânone do Antigo Testamento. Rêma theoû não é uma expressão consistentemente usada para isso. O termo rêma é mais comunmente usado para referir-se à palavra falada. Portanto, eu preferiria traduzir a expressão rêma theoû do trecho aqui estudado por algo como "mensagem de Deus", entendendo que a espada que nosso espírito tem na presente peleja é justamente a proclamação da mensagem do Deus Eterno. É, como estive argumentando, a Palavra de Deus que se inscreve em nosso interior pelo Espírito Santo e se manifesta no exterior como espada do nosso espírito, não a Bíblia como livro concreto. Isso tira a importância da Bíblia? De forma alguma. Pois a Palavra em nós inscrita deve estar em conformidade com a Palavra escrita, sendo esta ainda um padrão para julgamento daquela (quero dizer, para discernimento, uma vez que podemos confundir nossos pensamentos). Poderia ter tratado destas questões no corpo do texto, mas preferi restringi-las a este espaço discreto. Aqui, em meio às notas, elas serão encontradas somente por leitores mais maduros, pois os imaturos não frequentam as letras miúdas.


P.S. Fez algum sentido?


terça-feira, 18 de outubro de 2011

Sobre a série "ce tu uma bença" do blog Genizah (Série Opiniões Avulsas)

 
O blog Genizah tem sido muito frequentado nos últimos tempos. Sua proposta é fazer "apologética com humor". Não quero julgar aqui a proposta, nem as postagens em geral, e, muito menos, aqueles que produzem, divulgam e visitam aquele espaço. Mas uma série específica me incomodou muito. Seu nome é "ce tu uma bença". O editor (ou seja lá quem for) seleciona um comentário de visitante do blog e o expõe. Alguma vez, o responde por partes demonstrando sua inadequação. Outras tantas vezes, porém, não faz mais que humilhar o comentarista, revelando a ignorância do mesmo. 

Meu incômodo se manifestou na forma do seguinte comentário que acabo de fazer lá. Não espero boa repercussão naquele latifúndio. Mas não deixo de registrar aqui, no nosso lotezinho, a opinião que me ocorre, de modo que meus amigos tenham acesso a ela:

"Eu acho essa série "ce tu uma bênção" desapropriada. Não vejo mais que o desejo de expor e humilhar aqueles que já devem ser humilhados no dia a dia por suas limitações escolares. E o pior é que funciona como exposição de carniça. Logo aparecem os urubus aos montes para dar uma bicada. Há uma postagem interessantíssima abaixo desta quase sem comentários. Esta já está bombando. Por que será? Será que o nosso desejo de corrigir algumas coisas no meio "evangélico" não tem se transformado em um orgulho bobo? Será que não somos vingativos demais? Será que Jesus Cristo, que quero crer é o líder de todos nós, faria algo parecido com isso? Ele colocaria um judeu ignorante e sem formação que o condenava junto de uma figura de burro para que seus discípulos debochassem da ignorância do pobre?
Enfim, preocupações que me ocorrem e que incomodam aqui na alma. Julguem como quiserem."

Cesar

domingo, 16 de outubro de 2011

Tem Blogueiro na Cozinha! (Com Rô Moreira)



Desta vez, quem vem pra cozinha do Saboroso Saber ensinar a fazer algo bem gostoso é a Rô Moreira. A Rô é membro da Igreja Cristã de Nova Vida, na qual exerce a função de diaconisa, além de participar do louvor (O que quer dizer que ela participa do grupo de música que dirige os louvores da comunidade, não somente que ela participa dos momentos de cânticos, uma vez que todos o fazem. Isso eu deduzi.). Mas, entre nós, ela é provavelmente mais conhecida por seu afamado blog, o “Mulheres Sábias do Blog da Rô”.

Apesar de não ser muito dada aos afazeres culinários, Rô topou o desafio do Saboroso Saber de bom grado. Ela diz que costuma preparar coisas simples, pois são apenas quatro pessoas em casa (O planejamento familiar é imprescindível hoje em dia! Facilita até a vida na cozinha! Imaginem a Rô com panelão de dois quilos de arroz e seis bacuris esperando com fome!). Ainda assim, ela tem o costume de procurar receitas novas na internet quando se dispõe a preparar algo especial (De vez em quando pelo menos tem que dar uma caprichada, né, Rô?).

A receita que ela nos oferece, seguindo a linha do Anselmo que nos ensinou um risoto de camarão no mês passado, também tem tudo a ver com o mar. Com vocês:

Salpicão de camarão e maçã


Ingredientes:

½ kg de camarões limpos 
2 colheres de sopa de azeite
1 kg de maçãs ácidas raladas ( tipo palha)
Suco de limão
1 lata de creme de leite
1 colher de sopa de mostarda
1 colher de sopa de molho de inglês
1 xícara de chá de maionese
Sal e pimenta do reino a gosto
1 Kiwi em rodelas

Preparo:

Tempere os camarões com sal, pimenta e limão. Num refratário com tampa coloque o azeite e os camarões e leve ao microondas por 4 a 5 minutos na potência média (5), mexendo na metade do cozimento. Reserve. Descasque as maçãs, rale tipo palha, junte os camarões e acrescente o creme de leite, a mostarda, o molho inglês, a maionese e misture bem. Enfeite com kiwi em rodelas.

A Rô espera que os leitores do Saboroso Saber gostem e cita duas frases para fechar sua saborosa participação nesta cantina. A primeira, de Thomas Deloney: “Deus manda a comida, o diabo manda os cozinheiros.” Ainda não entendi. A outra é dela mesma: “Eu sei cozinhar: bons momentos em banho-maria.”

E eu espero que vocês tenham tido um bom momento acompanhando a participação da Rô por estas bandas! E que tentem preparar a receita. Mais fácil que isso eu não sei como! Ah, e de novo receita com camarão... Acho que tenho que convidar alguém que nunca morou perto do mar para a próxima! Alguém se oferece?

Um abraço! 

Cesar 

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

A Couve e a Palavra de Deus: Seu alimento diário tem sido preparado de um modo saudável?


A Bíblia nem sempre está em sintonia com as recomendações dos nutricionistas atuais. Algumas metáforas sugeridas nas palavras sagradas seriam vetadas sem constrangimento em alguns programas de tv. Coisas gordurosas são associadas à fartura (Is 25:6). Nós, cristãos, somos chamados pelo próprio Cristo de "Sal da Terra". E se a Terra padecer de hipertensão? Por outro lado, há também referências aprovadas pelo crivo da saúde. A terra prometida mana leite e mel. O leite é uma boa fonte de cálcio (desde que você não seja resistente à lactose). O mel, por sua vez, uma privilegiada dose de vitamina do complexo B. Além disso, o consumo de peixes, que é altamente recomendável, era usual entre os que andavam com Jesus. Ah, ia me esquecendo de uma dica incrivelmente concorde: Deuteronômio 14:21 assevera que não se deve cozer o cabrito no leite de sua mãe. Generalizando a coisa, os sábios judeus consideraram impuro preparar qualquer alimento com carne e leite ao mesmo tempo (isso é sério, os ortodoxos não comem em lanchonetes que sirvam hamburgueres com queijo para evitar problemas!). E é fato hoje comprovado que o consumo de leite junto com a carne prejudica a absorvição do ferro desta.

Enfim, acho que as tensões e aproximações estão suficientemente exemplificadas. Vamos ao ponto do texto: apesar de a Bíblia nem sempre estar dieteticamente certinha para os padrões atuais, não deixa de ser sensato e até mesmo biblicamente coerente cuidar da alimentação, uma vez que dependemos do corpo para exercer a nossa vocação (seja ela qual for). E Paulo cuidou disso, ao recomendar a Timóteo um ajuste em sua dieta (Tm 5:23). Tanto nosso alimento espiritual quanto o material deve ser equilibrado.

Agora, cabe uma observação: Podemos lançar mão de um ótimo ingrediente, em si muito benéfico, e contaminá-lo com elementos nefastos que estragarão o prato final. Tomemos como exemplo duas coisas, uma material e outra espiritual: a couve e a Palavra de Deus.

A couve é rica em fibras, cálcio e ferro. Mas alguém pode refogá-la na gordura de porco e enchê-la de colesterol. Pode também agregar pedaços de linguiça defumada, dessas industrializadas e cheias de nitritos e nitratos (substâncias que podem estar associadas à formação de tumores malígnos). Na mente do cozinheiro, isso agradará seus convivas. Sim, encherá o prato de sabor, mas não propiciará boa saúde. Uma opção seria preparar a couve com pouco óleo em uma frigideira. Ou, no melhor dos casos, fazer como eu: Pique a couve fina. Leve a uma frigideira e ligue o fogo (sem óleo). Não pare de mexer. Quando a folha estiver um pouco macia, desligue o fogo, acrescente um fio de azeite extra-virgem (variável de acordo com a quantidade do vegetal) e mexa bem. Pronto, ela fica brilhosa, saborosa e saudabilíssima.

A Palavra de Deus, por sua vez, é o alimento espiritual perfeito. Ela nos adverte quando erramos, nos consola quando sofremos, e nos incentiva quando desanimamos. Mas muitos a tomam, picam e misturam com ingredientes muito prejudiciais, tais como: avidez por dinheiro dos outros, noções rasas de psicologia barata, moralismo exacerbado e implicante, ímpeto acusador, rancor, programação neurolinguística e outras porcarias do gênero. O prato final (que pode ser um sermão, um artigo de blog, um livro etc) vai parecer atraente e substancioso, mas está é repleto de substâncias que vão anular o verdadeiro sabor da Sabedoria Divina, e trazer danos a nossa vida. Não tenho receita certa para preparar uma exposição bíblica. Não posso iludir-me com a ideia de que sou capaz de apresentá-la pura, crua. Até porque a própria linguagem moderna é requisitada para a mediação, bem como saberes que contextualizem a Escritura e a tornem compreensível. Tenho tentado não errar a mão. E sigo no aprendizado, pois, de cozinha e do Eterno, a gente nunca se cansa de saber.

Que haja sabor! Mas que também haja um saber que nos conduza a uma melhor condição física e espiritual!

Saudações gastronômicas e fraternais,

Cesar

P.S. Sobre os nitritos, mencionados com respeito às linguiças, atente-se para o fato de que, além de possivelmente cancerígenos, eles podem ser especialmente maléficos para as crianças, nas quais, agindo sobre as hemoglobinas, causam metahemoglobinemia, o que impede que o oxigênio seja transportado normalmente pelo sangue (Disso eu soube lendo um artigo que está aqui).

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Momento Tenso para a Igreja Egípcia - Oremos com eles e por eles

O Apóstolo Marcos é reconhecido pela tradição como fundador da Igreja Cristã Copta, isto é, Egípcia
Ilustração encontrada no site oficial da mesma

Coloquei uma nota de luto ao lado. Pretendo que esteja aí por três dias. Decidi, também, traduzir um comunicado que encontrei no site oficial da Igreja Ortodoxa Copta. Li notícias confusas em jornais brasileiros, as quais relacionavam esta igreja milenar como segmento da Igreja Católica Romana. Entendo que a confusão é fruto da ignorante dicotomia entre "Católicos" e "Evangélicos" que assombra o imaginário religioso brasileiro. A existência de igrejas antigas e independentes, como a do Egito e a da Armênia, faz-nos lembrar que a unidade dos cristãos não está no nome da instituição, mas no Cristo, que motiva a todos nós.


OS CRISTÃOS PERSEGUIDOS NO EGITO
Segunda Feira, 10 de Outubro de 2011

O Santo Sínodo da Igreja Ortodoxa Copta, sob a liderança do Papa Shenouda III, reuniu setenta presentes na Segunda-feira, 10 de Outubro de 2011, na residência papal no Cairo, Egito, para discutir a respeito dos eventos do dia anterior em frente ao Maspiro, onde pelo menos 24 de nossas crianças amadas foram assassinadas e pelo menos 200 foram feridas.

Nós estamos certos de que a nossa fé cristã não nos permite usar violência de nenhum tipo. Mas nós também sabemos que estranhos se infiltraram entre nossas crianças e cometeram atos que são mais compatíveis com a moral deles. Os cristãos coptas sentem que seus problemas têm se repetido sem que haja responsabilidade e sem a devida justiça da lei.

O Santo Sínodo convida todos os Cristãos Coptas a jejuar e orar por três dias, começando na Terça-feira, 12 de Outubro de 2011, para que Deus possa trazer sua paz para nosso amado país, o Egito.
Fonte: http://www.copticchurch.net/


Eu orarei por eles. E você? Lembre-se de que, em um corpo, se um membro padece, todos os membros padecem com ele (1Cor 12:26).


segunda-feira, 10 de outubro de 2011

A fé é fundamental para as obras (trecho selecionado da obra de Lutero em lembrança do mês da Reforma)

 Faculdades EST, São Leopoldo, RS

"Aqui cada um pode notar e sentir quando está fazendo algo bom ou não-bom: se seu coração confia que está agradando a Deus, então a obra é boa, mesmo que seja tão insignificante quanto levantar uma palha. Se não há confiança ou existe dúvida de que a obra agrada a Deus, então a obra não é boa, mesmo que ressuscitasse todos os mortos e a pessoa permitisse que fosse queimada. São Paulo ensina isso em Romanos 14.23: 'Tudo que não sucede a partir da fé ou na fé é pecado'. Por causa da fé, e de nenhuma outra obra recebemos a denominação de crentes em Cristo. Esta é a obra principal, pois todas as outras também um pagão, judeu, turco ou pecador pode fazer; mas confiar firmemente que esteja agradando a Deus não é possível senão para um cristão iluminado e amparado pela graça. Estas palavras parecem tão estranhas. Alguns me chamam de herege por isso. É porque eles seguiram a razão cega e a ciência pagã, colocando a fé não acima, mas ao lado de outras virtudes. Atribuem-lhe uma obra própria, isolada de todas as obras das outras virtudes. Na realidade, a fé, sozinha, torna todas as outras obras boas, agradáveis e dignas. Ela confia em Deus e não duvida de que, perante ele, tudo o que a pessoa fizer está bem feito. Sim, eles não deixaram a fé ser uma obra. Fizeram dela um habitus, como dizem, embora toda a Escritura denomine unicamente a fé de boa obra divina. Por isso não causa surpresa que tenham ficado cegos e se transformado em guias de cegos (cf. Mateus 15.14). Esta fé traz consigo imediatamente o amor, a paz, alegria e esperança. Quem confia em Deus recebe instantaneamente o Espírito Santo dele, como diz São Paulo aos gálatas: 'Vocês receberam o espírito não de suas boas obras, mas por terem crido na palavra de Deus' (Gálatas 3.2)." 

Dr. Martinho Lutero, no ano de 1520


Trecho de Das boas obras, também chamado Ética Cristã, retirado da obra publicada pelas editoras Sinodal e Concórdia como parte da coleção "Lutero para Hoje".

sábado, 8 de outubro de 2011

Goya e nós: ver a guerra


Uma vez, entrei numa sala cheia de quadros de Goya. Provavelmente, o melhor espaço em uma cidade de que não gostei tanto. Estar cercado de Goya é uma experiência interessante. É como se o porão de uma alma tivesse sido esvasiado e colocado à luz para a contemplação. Entre todos os quadros, por ignorância talvez, o que mais me chamou a atenção foi um que eu já conhecia pelos livros: "Escena de Guerra", pintado por volta de 1808.


A cena não é pintada com detalhes. Não há contornos bem definidos, mas pinceladas soltas e ligeiras que misturam as figuras com a nebulosidade do entorno. Mulheres estão em meio à batalha. Alguns caem ao chão. Mas percebo uma certa impessoalidade, já que não se caracteriza ninguém específico. Afinal, o quadro não é um retrato de uma pessoa, nem foca em um evento determinado. É a cena de uma guerra, como muitas possíveis. Mas há uma figura que se realça, não por maior definição. Pelo contrário. Ela não recebe nem as cores que as demais têm. Está quase no centro do quadro, mais ao fundo, na parte clara, com os braços levantados. Ela ou ele assiste a cena como nós, mas do outro lado da obra. Isso me sugere que se trata de um espelho. 

O outro espectador, dentro do quadro, reflete este cá de fora. E se ele me vê de lá, como eu o vejo de cá, para ele eu estou no quadro, na cena de guerra. E é verdade, já que a perversidade da contenda humana não se enquadra num quadro, mas transpassa nossa história e nosso interior desde os dias de Cain. E ele - a  figura do outro lado - levanta os braços. Por quê? Está assombrado com o que vê? Ou será que ele representa Ares, o deus da guerra, que vibra e se deleita com a cena, como alguns de nós, secretamente, diante de um jornal sensacionalista? Ou será que posso ver-me refletido com os braços erguidos em prece à minha única esperança, o Deus de Paz? Ou, ainda, poderíamos imaginar que ele grita, como queríamos também poder fazer, para parar a peleja, ou melhor, para movimentar a peleja estática, de modo que as armas fossem baixadas e o céu de novo tivesse cor?

Goya pra mim é isso. É a escuridão de uma alma que provoca a pesquisa em outras almas. Contemplando algo assim, o humano percebe sua humanidade. E, no assombro, a carência é revelada. 

Que o Eterno se apiede de toda nossa existência em guerra, porque nossa maldade parece não ter limites e, muitas vezes, não sabemos nem o que pensamos diante da dor e do medo. Somos muitos, perplexos em meio à maldade, sem saber olhar para a Luz.

Abraço,

Cesar


P.S. Escrevi isso porque há uma mostra de obras de Goya ("Los Caprichos de Goya") em Belo Horizonte atualmente. São gravuras que estarão expostas entre 3 e 30 de Outubro no edifício da Prefeitura de Belo Horizonte. A entrada é franca!

P.S.' Escena de Guerra encontra-se atualmente no Museo Nacional de Bellas Artes, em Buenos Aires, Argentina.


quarta-feira, 5 de outubro de 2011

A revolução adormecida


Eles já não eram tantos quanto um dia dizem que foram. Falavam muito, mas poucos lhes davam ouvidos. Uma gente que até já nem incomodava. Ninguém poderia imaginar que fariam algo novo. Mas um dia eles iniciaram a revolução que sacudiu as bases do nosso mundo capitalista-consumista. As armas haviam estado escondidas todo esse tempo no lugar mais improvável.

Hoje, em algumas universidades, tentam descobrir onde tudo começou. Há pesquisadores que apontam para uma cidade pequena dos Estados Unidos. Outros falam com entusiasmo de uma vila no interior do Quênia. E há também propostas que apontam para grandes e pequenas cidades na América do Sul, na Ásia e na Europoa. Não sei, mas começo a crer, ainda que crer antes fosse contra todos os meus princípios, que isso tudo começou mesmo foi na tal da Galileia. Sim, porque é tudo muito simples. A única arma que eles usaram foi essa que parece estar com eles desde mais de dois mil anos, mas meio inutilizada muitas vezes: o amor.

Eles não disseram nada muito diferente do que sempre disseram. Mas, de repente, começaram a agir de outra maneira. Pegavam todo o dinheiro que tinham e que não era necessário para manter sua família e ajudavam os outros. Pararam de adquirir bens para guardar ou ostentar. E não foi meia dúzia de uma comunidade que começou a agir assim. Foram milhares e, em algumas semanas, eram milhões. Cancelaram compras que estavam por assinar e muitas reservas em hotéis luxuosos. Deixaram de procurar os imóveis mais caros e algumas lojas de grife. Algumas concessionárias e casas de show ficaram desertas. Os publicitários já não sabem o que fazer. Esse pessoal já não se convence, já não entra no jogo. Até os governos não sabem como lidar com o assunto. Pensaram que se tratava de uma estratégia para lavar dinheiro ou se livrar do Imposto de Renda. Mas as proporções a que as coisas chegaram convenceram de que não era somente questão de burlar o fisco.

Meu negócio, entre tantos outros, faliu. Eu sou, ou melhor, era representante de uma marca que eu pensava que era eterna, dessas que vendem camisetas simples de algodão a cento e cinquenta reais só por causa da pequena identificação colada no peito. Sempre me dei bem no ramo. Principalmente entre esse pessoal que se reúne em umas igrejas aqui na redondeza. E agora? Perguntei a um antigo cliente o que estava acontecendo. Ele me olhou com um olhar cheio de compaixão, como se quisesse mesmo que eu entendesse e começou a falar: "Por que gastaríamos dinheiro com aquilo que não é pão?". Ele prosseguiu, mas não entendi muito, porque não me ligava nessa conversa de Bíblia.

Num dia desses, em um programa de TV, havia um debate entre algumas pessoas contra e outras a favor desse movimento (é assim que o estão chamando). Entre os debatedores, estavam dois bispos católicos, alguns teólogos e pastores protestantes, um sociólogo e outros pastores desses famosões. Um desses últimos foi meio patético. Parecia mais preocupado com a queda de vendas de sua editora do que com a inexplicabilidade das coisas. Outro reclamava que sua igreja andava vazia. Dizia que uns filhos do diabo tinham ensinado asneiras aos seus fieis, que já não queriam grandes vitórias na vida financeira. Um dos bispos católicos e um teólogo protestante, por outro lado, confessaram que já não imaginavam que nada igual aconteceria um dia. Disseram que esperavam que suas igrejas minguassem até o fim. Eles choraram no palco e contaram que venderam alguns bens naquela semana mesmo, indicando que estão participando também.

Com meu negócio falido e sem entender muita coisa, pensei em fazer uma bobagem. Mas um primo me ligou e perguntou se eu precisava de alguma coisa. Eu precisava mesmo, mas não era tanto de dinheiro, porque tinha um pouco guardado, dois imóveis e três carros bem caros. Eu conseguiria vendê-los com algum esforço. Bem, acho que conseguiria, mas por um preço bem mais baixo, pois com a procura em baixa e a oferta em alta, carros do tipo já empoeiravam em algumas lojas. Enfim, mas o que eu queria mesmo era alguma explicação. Esse primo era desse pessoal e agora, pela maneira como tinha me oferecido ajuda, eu sabia que participava do movimento. Por isso, perguntei:

- O que é que está acontecendo com vocês? Todo mundo endoidou junto? Vocês sempre falaram sobre essas coisas, mas se contentavam em fazer assistência social como todo mundo, para acalmar a consciência. O que é que está acontecendo? Tem alguém te obrigando a fazer isso?

Ele suspirou e respondeu de uma vez:

- Tem. Tem uma Lei escrita aqui dentro do peito que não para de arder. Toda vez que olho para alguém, mesmo desconhecido, ela arde mais forte e eu percebo cada uma de suas letras em brasa: "Amarás o próximo como a ti mesmo e a Deus sobre todas as coisas". Não tenho mais como viver de outra maneira. Minha vida como era acabou. Já comecei a vida eterna e, agora, já não sou mais eu quem vivo, é Cristo que vive em mim. Como é que eu poderia fazer alguma coisa diferente?

- Mas e a liberdade que o sistema te dá? Você joga fora todos esses séculos de desenvolvimento do capitalismo?

- A única liberdade que me interessa é fazer a vontade do Pai.

Eu desliguei o telefone na cara dele. Como é que tinha acontecido isso? Era como se um E.T. tivesse aparecido na minha sala. Por que não podiam ter continuado só falando, como antes? Assim não mexeriam com o sistema nem com minha mente. Não sei bem o motivo, mas voltei a ligar aos prantos poucos minutos mais tarde. Ele não atendeu. Estava batendo na minha porta. Eu abri e ele me abraçou. Não era meu primo. Não como eu o conhecia. Foi quando comecei a crer. Tudo por causa de um novo mandamento, que de novo nada tinha, somente o fato de que, agora, estava sendo vivido.

Desde então, o que se tinha como valoroso já nada vale. E o que se considerava secundário tornou-se o principal. Eu fui contagiado. Agora eu sou um deles, um dos mortos vivos, também chamados cristãos, que repudiaram a falsa liberdade das riquezas em favor da liberdade do amor em açao, e que assombram os aproveitadores do modo de vida capitalista-consumista.




Texto meu, Cesar M. R.